15 abril 2014

O Jardineiro Infiel.


Tenho certeza que dessa vez vim para cuidar apenas de mim.
Mas trago os resquícios dos amores incondicionais, das anulações e das abnegações.
Suas origens não sei, mas pulsam.

Porém, tenho tudo para ser liberto.
A falta de amar e ser amado, inclusive.

Com a idade, essa sanha voluntariosa em dispensar carinho a alguém veio através de um fulgurante desejo de ter um cachorro.
Nada mais impróprio, pois, como disse, dessa vez vim seguramente preparado a ter distância de animais, essas coisinhas fofinhas e meio bobas (no caso dos cães): tenho medo deles, das suas mordidas, dos seus dentes, das suas unhas, não suporto  xixi nem o cocô de animal pela casa, não concebo a ideia de dar banho ou cortar as unhas desses seres.
Quem quer que tenha me dado a missão de dessa vez vir apenas para me divertir e não cuidar de ninguém (no máximo, com esforço, de mim mesmo) sabe que eu me anularia e viraria o "véi dos gatos" em pouco tempo. Nem precisava eu ser velho, nem ter gatos.
Enfim.

Ganhei uma planta. Na verdade meio que pedi do jardim de uma pousada em Paracuru.
Lembrança de uma hospedagem gentil, de um final de semana lindo.
Helicônia o nome dela, e soube que dava flores lindas e estranhas.

A planta não deixa que eu me doe demais, o que é ótimo.
Se eu fico uns dias sem regar, ela não morre. Ela não parece gostar de mim nem desgostar.

Até que vez ou outra no sol de Fortaleza, ao meio dia (entendeu né?) eu pego uma tesoura e fico lá na varanda, podando as partes secas, cortando as pontinhas, ajeitando, cutucando...cuidando.
Amando. E ela sendo planta, parada e verde.
Me levanto, limpo as mãos na roupa e penso "é assim que é".

Estava tudo bem assim até que - trouxe ela pra dentro de casa uns dias, pois o sol estava difícil até para as plantas - levei-a para o alto da minha escada .
Uma madrugada - como uma mãe alerta à chegada do filho da farra - escuto um barulho de folhas e estalos.
Um dos gatos que meu pai cria - e que é outra história porque o máximo que conseguimos nos relacionar é eu ficar olhando pra eles sem expressão e eles olhando de volta, os olhos sempre arregalados e alertas, os gatos daqui não são blasés - simplesmente destruiu 70% , não, 80%, não, 95 % da minha pobre e amada Helicônia - que nunca floriu.

Eu chorei.
E meu Anjo-Da-Missão deve ter pensado: "Meu Deus, Não Tem Jeito."

Voltei a deixá-la lá fora e vigiar cada passo do gato sádico.
Meu pai disse que ele queria brincar. Sei.
Ela se recuperou, coitada. Não toda. Uns toquinhos quebrados estão lá ainda, secos e estoicos. Outros cresceram frágeis, mas quem faz mesmo a planta são os novos que nunca viram a pata assassina do gato.

Mas toda essa prosa  é porque a Helicônia (com letra maiúscula mesmo), do nada, na surdina, no verão, esses dias, em abril: deu flor.
Reconheci um inchaço, uma coloração vermelha, como uma unha inflamada.
Pensei (só pensei, pra não assustar o bebê, ou a mãe, enfim) "vai nascer uma flor!"
Nasceu uma (a da foto), nasceu outra, que ainda não abriu, e já notei com meu novo olho de feiticeiro que vem mais por aí.

Sou uma pessoa que tem flores na varanda de casa, agora.
Porque ela demorou tanto não sei, talvez porque nenhum ser vivo tenta me agradar de maneira óbvia ou na hora que eu espero. Ou talvez ela não dê a mínima pra mim, o que acontece muito também.

Pois é, não sei me comportar como alguém, cuja planta, floresceu.
Já estou impaciente pensando quanto tempo ela dura. Como vai ser quando murchar e cair.

Porque esse sou eu: sofrendo, amando. Amando coisas, pessoas, plantas, bichos.
Cadê o Anjo-Da-Missão agora?
Não confio muito no bom senso nem nas habilidades dele.
Preciso lhe falar pessoalmente das coisas que me são perigosas.