28 março 2008

Cá Entre Nós

Era uma vez um jovem, ou uma jovem, ou um velho, ou uma criança ou eu ou você que um dia sorriu ao ganhar uma flor ou um chocolate ou um bilhete.
E achou que a vida ou o destino seria assim sempre: sorrisos.
Depois do presente veio o final que não foi feliz.
O primeiro amor, o grande amor, o único amor, ou seja lá quem tenha sido, simplesmente sumiu no ar, na terra ou na chuva.
E o jovem ou a jovem ou o velho ou a criança ou eu ou você ficou lá em pé, no passado, no escuro, no frio.

E deu passos e "evoluiu" e amou novamente ou não, e tentou e chorou e fracassou e venceu e sorriu e gritou e dançou e cantou e as águas do moinho rolaram.
Mas um belo dia olhou para trás e se viu ainda lá parado, com a flor ou o chocolate ou o bilhete na mão, chorando.
Nunca, jamais saiu de lá para lugar algum.
E aquele vulto do que um dia foi ele mesmo, hoje menor ou maior ou igual nunca poderá sair de lá porque o passado se esquece mas não se apaga.

E aquele choro sentido de criança, de velho , de jovem , meu ou seu nunca será consolado porque o grande e único amor sumiu no vento e ninguém mais (nem o tempo) poderia fazer o que esse grande amor não fez.

O passado se esquece mas não se apaga, e vez por outra dolorosamente vislumbra o pobre vulto esquecido dos amores não vividos, ou dos sonhos não-realizados ou dos sonhos simplesmente.

Era uma vez, um desejo...

09 março 2008

20.000.000 de minutos.

Era hora de pôr as roupas, os livros e a escova de dentes na mala e ir embora.
Ele olhou ao redor e teve certeza: era só isso que ele tinha para levar.
Roupas, livros e escova de dentes.
Pensou se precisava mais do que isso pra viver.
Sim, precisava, mas ele sempre viveu sem ter tudo que precisou.
Decidiu que depois providenciaria o que faltava , se fosse possível.

O importante era ir embora já.
Porque já se passaram 14 minutos desde a hora que ele decidiu que devia ir.
14 minutos era um bocado de tempo para se atrasar, pensou ele.
O peso do atraso o desanimou: as coisas não começaram bem, já se atrasou.
O final não começou bem.

O que não começou bem não poderia terminar de outro jeito.
Sentou-se um pouco na cama com a mala no colo.
Decidiu que as roupas não eram necessárias.
Só peso morto e inútil, ele constatou e deixou-as cair pelo chão.
"Já estou vestido e bem vestido".
Bastava.

Lembrou das fotos, das cartas.. quanta bagagem um ser humano tem que levar.
Lembrou ainda de uma pergunta que fizeram a ele quando pequeno:
"Se sua casa estivesse pegando fogo e você pudesse salvar uma única coisa, o que seria?"
Ele não conseguia lembrar o que tinha respondido na época.
Devia ter sido a escova de dentes, pensou dando de ombros.

O fato é que ele sabia que jamais iria embora de todo dali.
Os agora 17 minutos de atraso diziam isso "Você nunca sairá daqui."
Ele odiava ser desafiado e olhou com um sorriso arrogante para o relógio azul na parede.
Olhou pra porta e pensou: "Será agora. Agora cruzarei aquela porta antes que sejam 18 minutos."
Ele não suportaria 18 minutos de atraso, era um número muito forte. Equivalia a 18.000.000 minutos de atraso.
Foi, com a coluna tensa e reta em direção à porta. A mala não estava bem fechada e livros caíram.
Se baixou para apanhar e tic tac: 18 minutos.
"Mas eu vou embora" disse para si mesmo.
Resolveu deixar os livros pelo chão: eles pularam da mala, queriam ficar.
E na mala só ficou a escova de dentes, azul como o relógio e como os olhos de Isabela.

20 minutos. O tempo passa rápido quando temos que ir embora.
Não ousou uma última olhada pelo quarto, mas antes de cruzar a porta, olhou pelo canto dos olhos para o relógio. Ele parara de funcionar. Os ponteiros estáticos.
20 minutos, pensou ele: o tempo que se leva para deixar algo e alguém.
Para deixar tudo.
Não fechou a porta.

Saiu para o céu azul, como a sua solidão.