28 abril 2019

Acumulação



Todo dia ele chegava em casa e guardava as chaves numa pequena caixa azul.

Era a única caixa onde ainda havia algum espaço para a coisa física de abrir e fechar portas.

Todas as outras, empilhadas por todo lugar, estavam transbordando.

Em muitas estavam seus sonhos, que foram os primeiros a serem arquivados. Muitos já tinham sido jogados fora, e os que estavam nas caixas da base da pilha também já estavam vencidos.

Estavam ali guardados também seu afetos, e esses eram os de mais difícil conservação.
Rejeitados dia após dia, insistiam em se manifestar em palavras, gestos, ações, atitudes, canções, silêncios, segredos, hinos e proclamações. Apenas pra formar uma massa gigantesca, volumosa em dor, inconveniente e cheia de pontas perfurantes.

Sempre que ele ia guardar os espécimes do dia, ele se machucava, vivia cheio de cicatrizes. Doía ver aquilo tudo indo pra escuridão do esquecimento, como um livro proibido e maldito da Idade Média, mas não tinha como carregar com ele porque amanhã viriam mais.

Aliás, quanto mais o tempo passava, mais vinha. Nos bolsos só cabiam as chaves.

Eventualmente ele sentava no espaço que ainda havia no chão perto da caixa onde guardava as palavras e essa parecia não ter fundo. Pelo menos esse pequeno alívio.

Pois ele cada vez mais caminhava em direção aos segredos.
Ele próprio se tornaria um em breve, ele próprio acumularia em si todo amor cujo destinatário recusou.

No espelho já se vê com a garganta arranhada, tossindo, tendo crises de soluços desses afetos, amores, sonhos e palavras querendo pular fora, de tantas e tão poderosas.
Mas não, é preciso engolir essas pílulas, ele sabe.
É preciso sorrir e dizer que compreende.
E sabe que por dentro o amargo de tudo que engoliu o definhará.

Num domingo desses, observa a caixa azul das chaves. Com o afeto do dia que teve que esconder lá dentro, a caixa está cheia.
Não imaginava que começaria agora a contagem regressiva.
(Embora fosse óbvio que seria num domingo)

Com tristeza infinita:
Engole então as chaves e dá início ao processo.

06 abril 2019

Não Que Você Tenha Perguntado, Mas...

Como estou?
Estou cada vez mais vago.
Cada vez menos parecido comigo mesmo.
Cada vez menos próximo ao que eu seria se.

Como estou?
Constantemente desconcertado.
Voltando à casa cinco minutos depois de sair
Porque esqueci algo essencial.
Andando por aí sem o essencial.
Sem entender o que dizem as placas todas.

Como estou?
Estou com torcicolo.
Porque penso o tempo todo que alguém está dobrando a esquina atrás de mim.
E porque tenho que esticar o pescoço pra não perder o vulto de vista.

Como estou?
Deixando cair os afetos das mãos
Se acumularam e não consigo mais selecioná-los.
Depois quando me movo piso neles e meus pés sangram, pois - não mencionei isso?- vivo descalço agora.

Como estou?
Arrependido, arrependido, arrependido de tudo.
Principalmente do que acertei.
Queria ter errado tudo antes, queria ter destruído a casa
Incendiado a cidade
Pulado na parte funda
Queria ter saído da estrada e devorado as flores.

Como estou?
Observando formigas.
Seus trajetos.
O peso que carregam, seus encontros e suas mortes.

Como estou?
Doente, eletrodomésticos quebrados.
Sapatos apertados e roupas frouxas.

Como estou?
Dançando sozinho.
Lúcido.
Não, louco.