23 setembro 2018

Travesseiros

Se me fosse possível escolher não estaria aqui.
Falando versos e cantando canções
De uma vida que não aconteceu e sejamos francos, não acontecerá.

Se fosse possível voltar no tempo
Questionaria os planos de minha mãe
Se planos houveram.

Se fosse possível apertar um botão
E sem dor encarar o branco da partida
Sem pensar sequer uma vez eu o faria
A dor move o dedo que escreve , a voz que canta.

Mas o fato é que aqui estou.
Cheguei até esta sala verde
Olhando para alguns rostos familiares, mas quase todos desconhecidos.

As lágrimas me esperam na casa.
Meus travesseiros sabem, eles me esperam, somente eles.
Inanimados e substituíveis, inúteis
Sequer me garantem um bom sono.

A ânsia de vida urge, ou melhor, ruge como um leão
Até ficar rouco pela falta de resposta.

No fim, não queria poesia, queria a frivolidade dos bons momentos
Queria a ignorante esperança
Queria não merecer a felicidade, e assim, como os felizes, obtê-la.

Queria não querer nada, se fosse permitido.
Se fosse, se eu fosse...

Mas recebi nas mãos a missão de amar várias estradas só de ida.
E até essas estradas desmoronaram à mínima chuva.

21 setembro 2018

Miragem

Nada aconteceu aqui antes.
Nunca o beijo, nunca o gosto.

Nenhum ladrão me esperava atrás da porta e nenhum mistério havia nas gavetas.
Nenhuma testemunha, nenhuma onda batendo nos rochedos.

Nada no pote de café, nenhuma xícara inteira.

Coisa alguma se formava nos canos de esgoto, o ar estava parado e sem vento.
Bandeirolas murchas, flores mortas, bichos plácidos com sede.

Tanta fome e nenhuma mesa posta.
Nenhuma antena no telhado, nenhum telhado.

Estendo roupas no varal como quem cumpre um santo ofício.
Vejo as camisas tão alvas tremulando ao vento, todas minhas e tão estúpidas em sua brancura de prontidão.
Prontas para coisa alguma.
Então um dia eu estava em pé olhando para o nada e definhando por dentro.
Olhei para minha sombra no chão e ela era enorme.

27 julho 2018

Desejável Despedida.



A trilha sonora da minha loucura
Muito velho, esbranquiçado
Cotovelos e joelhos gastos
Dedos tortos e mãos em garras

Tanta graça, porém
Rodopiando no tecido esvoaçante
Como eu anseio pela minha loucura!
Ao som de Chopin
A loucura trazendo a coragem que nunca houve

De sorrir e chorar, de dançar pela última vez
De torcer um pé ou derrubar um abajur

As torneiras todas abertas, as luzes piscando
E no clímax da melodia, chove.

Os rostos que amei, tão bonitos
Passam por mim em carrossel, bem clichê
Homens tão belos quanto tristes
Mas sorriem pra mim
Uma última vez

Não puderam me amar
E agora já estou louco e dançando
Já não os reconheço bem, mas já me apaixono de novo
E então eu estanco.

Como estanquei há anos diante da implacável certeza:
"nunca serei amado".
E meu último lampejo de razão foi entender que foi justamente para amar e ser amado que eu fui feito.
Mas tive que partir em pedaços e comer em cada café da manhã
toda a minha beleza, minha juventude e todo o carinho que eu tinha pra dar.
Como doía no meu estômago depois...

Nunca estive tão próximo da minha desejável loucura.

A noite chegou e me chama
Então já estou deitado, o tapete parece uma relva, tão macia
Em breve ramos e brotos me abraçarão
E o esquecimento será real para todos nós.

Mas apesar de toda a música e dos sorrisos
Apesar da paz aparente
Apesar da mão piedosa da loucura fechando os olhos do vulto estendido em algum chão
Não houve poesia em momento algum.

Uma vez sonhei que ouvia passarinhos cantando
Alguém passou por mim com ar cruel e proclamou sua missão:
De estilingue em mãos, ia "acabar com aquilo".
Eu apenas disse "mas é tão bonito".


29 junho 2018

Uma Doce Odisséia.



Enquanto um corria, o outro olhava.
Um orbitava orgulhoso e incólume, enquanto o outro, enraizado, sentia o vento.
As quatro estações eram formadas pela velocidade dos seus passos, mas o outro só era outono.

O rosto do que corria brilhava de suor e de glória, mas o  rosto do outro era uma sombra azul de placidez como a lâmpada do quarto de dormir da avó, sempre marcando dez da noite e o cheiro de lençóis limpos.
O um estava sempre despertando enquanto o outro estava sempre esperando o toque de recolher.

O um por vezes acenava em sua corrida frenética e o outro amava como suas sobrancelhas se erguiam por um segundo, numa reverência inconsciente. Todas as tristezas pediam passagem no sorriso do outro ao contemplar o atleta e sua cena.

O que era feito de sol tinha amplos caminhos e espaços e sua correria era em zigue-zague e em círculos perfeitos, o outro se movimentava por frestas e reentrâncias escavadas com as próprias mãos e unhas quebradiças.

A carreira do um nunca era ao encontro do outro, ele passava adiante como fantasmas em paredes. O outro ainda e apenas sentia o vento.

O outro sentia o vento, que é aquilo que se sente e não se vê, mas o um era matéria, era corpo e era cheiro. O um existia, o outro apenas acontecia aqui e ali, e cada vez menos.

O um subia em pódios, posava para fotografias e dava autógrafos. O um comemorava qualquer-vitória em camas de neon, enquanto o outro, como uma Eleanor Rigby autômata, jogava arroz sobre si mesmo.

O que corre é feito de mármore,  e o outro executa seu destino sisífico de rolar a pedra em torno de si  e desabar ao final de cada tarde.

Em corpo ou memória,  os mistérios do destino torturam o outro e também o um, mas este não o sabe, desconhece onde dói e portanto apenas ele tem chances de sobreviver ao próprio infarto.

O outro, porém, é quem sempre estará lá, sentinela, amplo em seu limite e extenso em seu solitário amar.

28 maio 2018

Não É Verde Nem Voa

Ela usa um vestido de trapos, cor de sujeira.
As pontas da saia são acinzentadas e afiadas
Tem mãos gigantescas com garras curvas e destrutivas
Uma força descomunal nos braços frágeis e ossudos
A despeito dos dentes podres, ela não exala cheiro.

Deitada ela mede quilômetros e geralmente é assim que ela se move:
Ela se arrasta.
E ainda assim, paira.

Sua voz é um fio seco e constante, semelhante ao grito quando se cai em um abismo sem fim.
Ela sorri o tempo inteiro, sua gargalhada é uma tosse cheia de gemidos.

É cega e guiada por radares muito mais sensíveis
Ela vê principalmente o que não existe.

Há um inseto com seu nome, mas ela nada se assemelha a ele:
Não é verde, nem voa
Não é delicada nem pousa em ombros
Não faz sentido na natureza, só serve aos humanos
Ela escraviza.

Não mora em quartos escuros nem em paisagens sombrias
Ela ataca quando a gente sorri
Quando a gente suspira
Quando a gente acredita
Quando a gente segue em frente

A placa dantesca, injustiçada, só estava tentando nos avisar:
Deixai toda ela, se quiseres entrar
E sobreviver a este lugar.
Pois o inferno sem a presença dela
É só um inferno com uma porta de saída.



15 maio 2018

O Último.


Na fila da vida, o divino estava distribuindo desígnios:
Ao primeiro: "você vai ter uma vida longa e feliz"
Ao segundo: "você vai ser brilhante e terá muito sucesso"
Ao terceiro: "uma vida pacata e tranquila em contato com a natureza"
Ao quarto: "Terá boas surpresas e viverá grandes aventuras."
Ao encarar o quinto, bateu aquele cansaço de ser tão generoso e a pontinha do sadismo que habita cada coisa do universo falou mais alto:
"Você vai amar várias estradas só de ida."

E sorriu sem remorso.

06 maio 2018

Requiem

Escalei montanhas e varei desertos para chegar nesta joia da verdade:
"Será num domingo."

A papelada que não li já dizia isso, estava nas linhas miúdas do contrato que assinei, estava dentro do biscoito da sorte que não abri:
"Será num domingo"

Estava o tempo todo debaixo do meu nariz, debaixo do meu travesseiro, escrito no espelho do banheiro:
"Foi num domingo"

Era isso que a mensagem na garrafa dizia, o pergaminho em sânscrito e o sonho que eu tive tentaram me avisar:
"Tem sido aos domingos"

Ignorei a marca das unhas na parede, os óculos sempre molhados de lágrimas, os cabelos arrancados deixavam claro:
"Será num domingo"

Essa parede branca implacável, a ausência de sons e a sensação de naufrágio não podiam se confundir:
"Tem acontecido aos domingos"

Diante de tantos sinais, não há o que se fazer, não quero fazer, ninguém pode fazer, as pessoas estão no sábado, ou também tem seus domingos, um domingo chama outro domingo e só quero que o domingo chegue logo, o domingo que o outro domingo chama, o domingo que os outros domingos preparam, o domingo que os outros domingos fazem a cama, tecem os bordados, mexem na panela, aquecem no ventre:
o domingo que finalmente cessará os domingos.

01 maio 2018

Insumos

Amigo, teus olhos me sobressaltaram
Para eu correr e lembrar de tirar as torradas que estavam assando no forno
Pois mesmo as torradas não podem queimar demais.
E mesmo o sentimento mais despreocupado não pode ser esquecido na janela
Ou os insetos tomarão conta

E, amigo, os insetos também tem o direito deles
De devorar com ânsia o que é doce
E sem proteção alguma.

Amigo vês que te admiro os pés e os braços
Que não são necessariamente aquilo que te move em essência
Mas porque pisam e abraçam
E há um poder nisso que a ninguém suplanta.

Debaixo das telhas do que desabou
Existem colônias de bichos, coloridos, vagaluminosos
Nunca antes vistos nem devorados nem mesmo nos países onde se comem insetos
Uma surpresa reservada para nós dois, amigo
Um cardápio para nosso paladar incomum
Que nem nós saberemos se o gosto é bom ou ruim

Ah amigo e existe a aurora, aquela luz azulada que depois fica branca
E fica amarela, e laranja e vermelha
E volta a ser azul
Porque azul é a cor das coisas que nunca foram vistas
E das flores nunca colhidas
E dos sonhos nunca realizados
E dos campos que nunca viram pés correndo sobre eles nem gritos de alegria

Mas caminharemos passo a passo, apenas
Segurando nossos ventres com constrangimento e prazer
Sobre o caminho que um de nós escolher
Ou sobre os caminhos que ninguém escolheu
E que não são ladeados por flores azuis
Porque não sabemos se gostamos dessa cor

Contanto que haja tua mão, amigo
Apertando forte ou fraca a minha
Ou até distantes
Não saberemos o gosto de nada
Mas pelo menos para um de nós
Será bom.

20 abril 2018

Amigo, Olha Nos Meus Olhos.

Amigo, tu deixaste o embrulho esquecido no assento que ocupaste.
Toma, amigo, o pacote que eu sei que não esqueceste, mas simplesmente abandonaste
Esperançoso que ninguém repararia tua pequena desfeita.
Perdoa-me, amigo, por perceber teu desamor, teu desprezo, tua frieza.
Sei que és este ser em natureza, que larga e que faz pouco, que joga no lixo o resto do bolo que te foi carinhosamente servido.
Ou mesmo toda a fatia.
Mas amigo, eu noto tuas sombrias facetas, teus movimentos furtivos, tuas escolhas erradas e tuas vis distrações porque, veja bem amigo, ninguém mais as percebe.
A ninguém mais tu interessas, a não ser a esta sombra de gente, este espectro de amor, esta réstia de paixão.
É este teu castigo, amigo amado, engole este fardo.
Ninguém vai te amar jamais e logo mais, num entardecer qualquer, num ímpeto de ladrão:
Tu serás a bagagem esquecida.

15 abril 2018

Mudez.

definhar
verbo
  1. 1.
    transitivo direto e pronominal
    fazer perder ou perder as forças; debilitar(-se), extenuar(-se).
  2. 2.
    intransitivo
    tornar-se paulatinamente fraco, magro, abatido; emagrecer

    sozinho
    adjetivo
    1. 1.
      inteiramente só, isolado, sem nenhuma companhia.
      "disse que queria ficar s."
    2. 2.
      acompanhado somente de uma outra pessoa.
      "disse que ficaria s. com o professor"
    3. 3.
      sem auxílio de ninguém, por conta própria; desajudado.
      "fez todo o trabalho s."
    4. 4.
      por si mesmo, sem intervenção de ninguém.
      "a casa desabou s."
    5. 5.
      consigo mesmo.
      "costumava falar s."
    6. 6.
      desprovido de carinho, de afeto, de auxílio moral ou material; abandonado.
      "perdeu o pai e a mãe e ficou s. no mundo"
    7. 7.
      que é só um; isolado, único.
      "via-se uma árvore s. no descampado"
    8. 8.
      ermo, deserto, desabitado.
      "lugar s."

      abandono
      substantivo masculino
      1. 1.
        ato ou efeito de largar, de sair sem a intenção de voltar; afastamento.
        "o a. da casa foi uma boa decisão"
      2. 2.
        falta de amparo ou de assistência; desarrimo.
        "o a. de menores é um crime"
         
         
         
        dor1
        ô/
        substantivo feminino
        1. 1.
          med sensação penosa, desagradável, produzida pela excitação de terminações nervosas sensíveis a esses estímulos, e classificada de acordo com o seu lugar, tipo, intensidade, periodicidade, difusão e caráter.
          "d. de cabeça"
        2. 2.
          mágoa originada por desgostos do espírito ou do coração; sentimento causado por decepção, desgraça, sofrimento, morte de um ente querido etc.
          "a d. de ver por terra os seus sonhos"
        3. 3.
          sentimento que surge em decorrência de dano causado a outrem ou a si mesmo; arrependimento, pesar, remorso.
          "feria-o, implacável, a d. do que fizera"
        4. 4.
          sentimento de pena com relação a outrem ou a si mesmo; compaixão, dó.
          "tinha d. de ver as dificuldades por que passavam os vizinhos"
        5. 5.
          fig. expressão ou manifestação do sofrimento físico ou moral.
          "versos plenos de d."
        6. 6.
          substantivo feminino plural
          infrm. os sofrimentos provenientes do trabalho de parto.
          "quando lhe vieram as d., correu para o hospital"


    E nenhuma palavra descreve.

01 abril 2018

Minha Melhor Amiga Me Abandonou.



A minha melhor amiga sempre chegava sem avisar na pior hora
Eu nunca a chamava, eu sequer considerava que ela viesse
Mas num piscar de olhos lá estava eu nos seus braços
Ela vinha me salvar
Entendi com o tempo que ela sabia o momento exato de intervir
Se viesse antes não seria notada
Se viesse depois seria tarde demais.

Ela trazia travesseiros e coisas macias
Ela me fazia chorar e eu me sentia melhor depois
Ela me fazia rir também, mesmo que em meio às lágrimas
Ela me dava água para beber e me fazia olhar pela janela pra respirar fundo.

Ela me esgotava até eu percebi que tinha sobrevivido
E então ela desaparecia sem que eu me despedisse.

Mas a minha melhor amiga
Ela vinha me salvar dela mesma
A missão dela era me deixar vivo
Para a sua próxima visita
Ela era infinitamente mais cruel que eu
Só assim poderia ser minha melhor amiga.

Mas agora ela não tem mais vindo
Por isso estou falando dela no passado
Ela tem me deixado a sós com ela mesma
Com  a pior parte dela
Sem travesseiros, sem nada macio
Sem o choro redentor, sem o riso que me levava à razão
Sem janelas.
Ela secou fontes e garrafas.
A hora certa passou e ela não veio me salvar
Ela veio não-me-salvar.

E agora? me pergunto olhando pro relógio
Ela devia ter vindo há meia hora atrás
Eu não devo ter sobrevivido dessa vez

É isso, ela quer que eu siga sem vida.

(A minha melhor amiga nunca mais vai embora?)

Mas nossa relação ficou abalada com esse abandono
Eu poderia esperar de todos, mas dela não
Eu não quero chamá-la mais de "melhor amiga"
Mas sei que de algum lugar em um inferno distante ela está sorrindo
(para mim)
(de mim)
Porque sabe que é inútil.

Mas qualquer barulho que ouço
Penso que é ela
Não sei porque, ela vinha silenciosa
Má, rasteira, torturante, sedenta
Minha melhor amiga.

Que saudade dela.












18 fevereiro 2018

Não Acaba

Não acabou ali nem aqui.
Não foi no ponto quando você chorou
Nem quando cuspiu pro alto
Não acabou quando você rolou ribanceira abaixo
Nem quando jogou seu carro no precipício

Não foi quando você misturou os venenos

Nem tampouco quando apertou o botão vermelho

Não acabou na hora marcada
Nem na hora do angelus
Nem quando faltou ar
Nem quando você calçou a sluvas
Nunca acabou quando você quis
Nem quando você desistiu
Acabou faz tempo, quando você menos imaginou
Acabou quando você disse "sim"
Quando girou a chave na porta
Quando abriu a janela, acabou ali
Vem acabando em cada manteiga no pão
Acabou, finalmente, quando engoliu seco
Quando selou a carta, quando montou o cavalo.
Só acaba quando começa, você pensa
Mas acabou antes de.
Saiba que
A esperança é a última que te mata.