01 setembro 2015

Nudez Artística



Sempre estive rodeado de gente.
Na minha casa eram eu, meu irmão, um primo sempre.
Meu pai, minha mãe e um tio inválido.
Uma porta na cozinha levava à mais família paterna:
Duas tias, minha avó e uma tia avó que desde que eu nasci já tinha 90 e tantos anos.
E Jô o cachorro, metade dálmata metade não sei o quê.
Minha grande fobia: baratas.
Mas tinha muita gente pra matá-las.

Meu tio morreu.
Minha tia avó depois.
Jô morreu do coração quando brincava no quintal.

Todos fomos pra mesma casa.
Mas meu irmão casou e foi embora.
Uma das tias foi morar com o namorado.
Minha avó  partiu.

"O tempo rodou num instante"

Minha outra tia foi morar com meu irmão.
Meu primo fez família, não veio mais.

Minha mãe suspirou e partiu.

Estamos aqui eu e meu pai.
Ele sozinho na imensa casa embaixo.
Eu na casa menor de cima.

Minha fobia de baratas é a mesma.
Quando acordo de madrugada e vou banheiro
Levo sempre uma lata de veneno.
Ando segurando ela pela casa e quando saio também.

Cabe a mim matar as baratas quando elas aparecerem.
E elas vão aparecer, mais cedo ou mais tarde.

Vou eventualmente na varanda, sozinho, de noite, de madrugada.
Também levo o(s) veneno(s).

Vivo com medo.
Da praga, da solidão.

"Ele só quer um pouco de carinho." _ disse um amigo clínico sobre mim.
Mas eu escutei isso como uma ordem médica.

"Quanto ao futuro."


19 julho 2015

Letal



Sorrateiramente pela madrugada

Chega a mancha da assustadora constatação:
A vida é uma grande surra.
Nossos corpos acordam doloridos e com marcas.

Vergões roxos.
Não há nenhuma canção de ninar que nos salve de sermos atacados durante o sono.

Repentina como um infarto
Instala-se a perturbadora certeza:
O amor é o diabo.
Nossos olhos cheios de morte e miséria.

Retinas retintas.
Corpos sendo arrastados por um inferno azul.

Ensandecido como eu apaixonado
Assenta-se sobre o peito raquítico:
O mundo inteiro, pesado e pétreo.
A solidão é cristalina.
Uma fonte onde empurram nossa cabeça pra baixo.

Afogados em sangue
Pés descalçados para dormir
Como se simplesmente pudessem.

Loucura tropical fatal transmitida por mosquito.
Para morrer dela, basta, como um tolo suado e dilatado, acreditar.

18 janeiro 2015

Ritual


Esse filme eu já vi antes. Essa luz amarelada. Essa multidão. Esse açúcar no fundo do copo.
Já dancei essa música. Essa mão estendida. Essa mancha na camisa.
Essa fumaça, já apaguei.
Já desmascarei essa mentira.

Esse corredor sem fim, já percorri.
Já me perdi nesse labirinto antes.
Já comi a escuridão antes, já mergulhei na poeira.

Já. Já. Já. Também. Já.
Já enlouqueci ontem mesmo.

Já fiz rodeios para dizer o que quero:

Essa apoteose, essa gargalhada, esses fogos de artifício explodindo pra mim, essa onda batendo e esse coral de anjos cantando meu nome e esse céu se abrindo.
Já vivi essa morte antes.

E esse escuro, essa réstia de luz na porta, esse ponto de interrogação, esse soluço.
Essa palavra maldita, esse bendito silêncio, esse eco me dá medo.
Esse pôr do sol, onde eu vi isso antes?

Já dei giros em torno de mim mesmo, já orbitei, não há mais galáxia para fugir.

Já dormi. Essa cama. Já me despedi de todos vocês.

E esse retorno, essa trilha, esse mapa que enfim já desenhei na parede.
Já apaguei  e estou aqui refazendo.

Essa vida.