18 dezembro 2021

Conchas.

 Onde estão tuas pérolas?

Sei que tens alguma aí nos teus bolsos. 

Eu sempre encontro uma quando menos espero. Um dessas manhãs, em janeiro, quase engoli uma no café.

Era de um tom rosé tão impossível para uma pérola.

Mas o que entendo eu de surpresas?

Outro dia algo me incomodava no sapato. Eu sabia: era uma delas, menor que as outras mas talvez a mais brilhante da minha coleção. 

Dia desses, num domingo, cuspi duas de uma vez no meio de uma gargalhada.

Onde está teu mistério, meu bem?

De vez em quando encontro umas prateadas debaixo do meu travesseiro, geralmente quando sonho dando adeus de uma plataforma. Pérolas da cor do trem que levava alguém que eu amava muito.

Essas me assustam um pouco, consigo ver meu reflexo nelas.

Todo outono eu sacudo minhas roupas e junto as pérolas que caem, são tantas. 
Mas em compensação, passo meses sem encontrar nenhuma.

O que você vai fazer das pérolas que você encontrar nas suas gavetas, no seu escritório, no cabelo da pessoa que você acaricia? No seu gato e no seu cão?

Estou tão curioso quanto a isso. 

Tragam suas pérolas, meus convidados. Não aceito não como resposta.
Tragam todas, podem ser dessa cor marfim que já conhecemos, podem ser cor de lágrima, rosé, prata, qualquer cor.

Podem ser tristes, rebeldes, podem machucar sua mão, seu coração, seu juízo. Podem enfeitar tuas vitórias, teus fracassos, tuas vergonhas e orgulhos.

Vamos combinar um dia em setembro e vamos colocá-las na mesa.

Sentaremos, beberemos um pouco de vinho e diremos:

"Apesar de tudo, temos pérolas."


Às Vésperas.



Acordou naquela manhã de um pulo
Sem perceber já estava passando manteiga no pão e olhando para todos os relógios da casa
Como se em um deles houvesse a resposta  que ele queria.

Mas resposta para qual pergunta? 
Ele na verdade queria a pergunta e a resposta, mas lembrou de sua mãe lhe dizendo "não seja tão ambicioso, criatura."

Não terminou nada que começou a fazer: se afastava das louças e cafeteiras olhando tudo pela metade, inacabado.
Assim tudo parecia mais familiar.
Rodopiou pela sala em busca das janelas: não fazia calor, não fazia frio

De repente estancou ciente da razão de toda aquela agitação:

"Estou para acontecer"

A qualquer minuto, eu vou entrar por uma dessas portas.
A qualquer minuto meu vulto me espiará pelas janelas.
A qualquer minuto vou ouvir minha gargalhada, sempre com um soluço de desconsolo no final.

Sentou e esperou:

A qualquer minuto ele irromperia naquela sala gritando, cantando, em silêncio, dançando, rindo e chorando, pedindo para ser contido.
Ele pensou
"Mas não vou me conter: vou me trair"

Sentado esperando. Sentado esperando. De pé esperando. Deitado esperando.

"Estou fazendo esperança" pensou angustiado.

De repente escutou um clarim, olhou para o sol brilhando lá fora.
"Eu devo estar chegando agora."

Quanto tempo ele esteve às vésperas de si mesmo, não sabemos.

Quando ele aconteceu, os relógios pararam, inúteis.
Mas sabemos que no último minuto ele se contemplou chegando e disse:

"Finalmente sou eu."




06 fevereiro 2021

O Amor Não É Azul


Não sei dizer a cor que ele tem
Furta cor? âmbar?
Cores difíceis de descrever, como cheiro de barata.

Igualmente causa arrepios.

Se eu fosse um pintor, e fosse pintar o amor:
Me lambuzava com todas as tintas, bebia elas e depois vomitava na tela e dizia:

"Está aí O Amor"

Está aonde O Amor?
 "Eu não sei, eu não sei, Dindi"

Que gosto tem o amor?
"Quando provarem o fruto, digam o gosto pra mim"

Mas estou brincando com vocês: as músicas todas descrevem, dissecam o amor em todos os detalhes:

Dizem que o amor é azul.

Talvez seja, mas o que importa sua cor, seu cheiro, onde está e quantas vezes ele bebe água por dia?

O meu amor, esse eu sei:
Que nem as cigarras, passa anos debaixo da terra, para depois sair ao sol, cantar, dançar, fazer um espetáculo
E morrer logo depois.



21 março 2020

Todos Os Dias São Domingos Agora.






Uma vez vi uma borboleta pequenininha branquinha toda serelepe na árvore em frente a minha varanda num domingo de manhã.
Naquele momento acreditei que ela estava ali se exibindo e sendo linda pra mim.
Me mostrando a alegria dela, a leveza.
A borboleta com certeza estava vivendo a curta vida dela, se alimentando das reservas de quando era um casulo, bebendo o néctar das flores e os sucos das frutinhas.
Não acredito no místico da vida, infelizmente.
Mas eu escolho as ilusões nas quais eu vou acreditar.

Passei a vida lidando com a solidão dos domingos e escrevendo sobre eles.
Agora todo dia está sendo domingo e não sei quando a segunda feira chegará.

Amanhã eu acordarei cedo e verei mais borboletas.
Talvez eu sonhe com elas ainda hoje.
Enquanto eu mesmo me alimento das minhas reservas e bato asas curtas num lugar apertado e com teto, a vida lá fora precisa acontecer sem que eu participe.
Amanhã e depois de amanhã a vida tem que acontecer aqui dentro do meu quarto.
Aqui eu sorrio, olho fotografias, lembro das pessoas, canto e choro.
Talvez a gente primeiro tenha que aprender a viver dentro.

Talvez a gente só deva ir pra fora quando a gente não precisa lá de fora.

A vida da gente não é tão curta como a das borboletas, então a gente precisa inventar.
Inventar o hoje, o amanhã, os domingos.
Até o ontem a gente precisa ter inventado.

Daqui de dentro eu olho pra mim mesmo lá fora: um espectro dançante que não acredita no místico, que ama sem ser amado, que recebe de borboletas o carinho que elas não dão.

O eu lá de fora vai se distanciando no horizonte e me deixando a sós com o eu daqui de dentro.

Estamos sós, eu e ele, e ele é tão parecido comigo, chora igual a mim, ama igual a mim, canta com a minha voz.
Preciso abraçá-lo, porque é o único que eu posso abraçar agora e em todos os domingos que virão.


04 setembro 2019

Sopro

É muito fácil ficar triste.
Um vento invertido, algo que se lê,
Uma lembrança que passa correndo e rindo como uma criança no campo
E pronto, abrem-se as portas delicadas
da tristeza.

Amar é estar numa casa cheia de cristais
Não são seus, nem a casa é sua
nem sequer o amor é seu
Mas você habita, inteiro, tudo.

Uma hora do dia a luz bate nos cristais e ficamos cegos
Tudo pode significar ruína
Nenhuma criança pode correr brincando e rindo
Nenhum vento pode inverter-se ou tudo se quebra.

Todo dia abrem-se as portas de tristezas cristais
As taças tremem, os brilhos ameaçam
O brinde é sempre um pedido de socorro.

Em alguma hora do dia a tristeza chega.
E quebra todos os cuidados que eu insisti em ter comigo mesmo.

28 abril 2019

Acumulação



Todo dia ele chegava em casa e guardava as chaves numa pequena caixa azul.

Era a única caixa onde ainda havia algum espaço para a coisa física de abrir e fechar portas.

Todas as outras, empilhadas por todo lugar, estavam transbordando.

Em muitas estavam seus sonhos, que foram os primeiros a serem arquivados. Muitos já tinham sido jogados fora, e os que estavam nas caixas da base da pilha também já estavam vencidos.

Estavam ali guardados também seu afetos, e esses eram os de mais difícil conservação.
Rejeitados dia após dia, insistiam em se manifestar em palavras, gestos, ações, atitudes, canções, silêncios, segredos, hinos e proclamações. Apenas pra formar uma massa gigantesca, volumosa em dor, inconveniente e cheia de pontas perfurantes.

Sempre que ele ia guardar os espécimes do dia, ele se machucava, vivia cheio de cicatrizes. Doía ver aquilo tudo indo pra escuridão do esquecimento, como um livro proibido e maldito da Idade Média, mas não tinha como carregar com ele porque amanhã viriam mais.

Aliás, quanto mais o tempo passava, mais vinha. Nos bolsos só cabiam as chaves.

Eventualmente ele sentava no espaço que ainda havia no chão perto da caixa onde guardava as palavras e essa parecia não ter fundo. Pelo menos esse pequeno alívio.

Pois ele cada vez mais caminhava em direção aos segredos.
Ele próprio se tornaria um em breve, ele próprio acumularia em si todo amor cujo destinatário recusou.

No espelho já se vê com a garganta arranhada, tossindo, tendo crises de soluços desses afetos, amores, sonhos e palavras querendo pular fora, de tantas e tão poderosas.
Mas não, é preciso engolir essas pílulas, ele sabe.
É preciso sorrir e dizer que compreende.
E sabe que por dentro o amargo de tudo que engoliu o definhará.

Num domingo desses, observa a caixa azul das chaves. Com o afeto do dia que teve que esconder lá dentro, a caixa está cheia.
Não imaginava que começaria agora a contagem regressiva.
(Embora fosse óbvio que seria num domingo)

Com tristeza infinita:
Engole então as chaves e dá início ao processo.

06 abril 2019

Não Que Você Tenha Perguntado, Mas...

Como estou?
Estou cada vez mais vago.
Cada vez menos parecido comigo mesmo.
Cada vez menos próximo ao que eu seria se.

Como estou?
Constantemente desconcertado.
Voltando à casa cinco minutos depois de sair
Porque esqueci algo essencial.
Andando por aí sem o essencial.
Sem entender o que dizem as placas todas.

Como estou?
Estou com torcicolo.
Porque penso o tempo todo que alguém está dobrando a esquina atrás de mim.
E porque tenho que esticar o pescoço pra não perder o vulto de vista.

Como estou?
Deixando cair os afetos das mãos
Se acumularam e não consigo mais selecioná-los.
Depois quando me movo piso neles e meus pés sangram, pois - não mencionei isso?- vivo descalço agora.

Como estou?
Arrependido, arrependido, arrependido de tudo.
Principalmente do que acertei.
Queria ter errado tudo antes, queria ter destruído a casa
Incendiado a cidade
Pulado na parte funda
Queria ter saído da estrada e devorado as flores.

Como estou?
Observando formigas.
Seus trajetos.
O peso que carregam, seus encontros e suas mortes.

Como estou?
Doente, eletrodomésticos quebrados.
Sapatos apertados e roupas frouxas.

Como estou?
Dançando sozinho.
Lúcido.
Não, louco.

19 março 2019

A Cerimônia

Depois de uma madrugada praticamente vidrando o teto do quarto com o olhar molhado
Vou na varanda nos primeiros raios da manhã
E me deparo com uma borboleta solitária pousada na árvore em frente
Enorme, branca
"Como louco eu até sorri"
Você é tão linda..
Já tive alguns momentos assim também, sabe..mas sem testemunhas.
Me demorei um tempo olhando pra ela
Lentamente ela abriu e fechou as asas graciosíssima, solene, espetacular
Pra mim, não é, borboletinha?
É pra mim, me deixa acreditar que é
Alguma coisa bela pra mim
Que alguma coisa finalmente seja pra mim

12 março 2019

Veredicto


Há no meu coração todo dia um julgamento.

Com juiz, meirinho, réu. Tudo.

A promotora é a Razão que lista todas as humilhações, desprezos, desconsiderações que você me destinou.

Implacável, ela destrincha tua natureza egoísta e perversa, incapaz de amar ou ser amado.

Os fatos que ela apresenta são incontestáveis, os argumentos são imbatíveis, a oratória dela é perfeita. Não há um furo sequer no que ela apresenta.

Eu sei que ela está certa.

Olho porém pro lado e lá está ele: o advogado de defesa.

Ele se chama Meu Amor Por Você.

Ele não diz uma palavra sequer, apenas se levanta no tribunal.

E em seu silêncio põe por terra todos os argumentos da promotora, reduz a nada os fatos, dissipa qualquer dúvida, destrói qualquer prova. Não se tem mais um caso.

A promotora guarda sua pasta e olha pra mim apenas, derrotada.

Eu peço perdão a ela com meu olhar, sei que ela só queria me salvar.

Mas nem eu posso.

Se um dia - o que é impossível, improvável-  o Meu Amor Por Você morrer, não haverá mais defesa.

Nunca mais nos veríamos. Não haveria perdão. Porque tudo está tão fresco e certo. Tudo dói todo dia e toda hora, a toda hora que eu respiro eu sinto o desamor.

Mas não se preocupe, o Meu Amor Por Você vai sobreviver até a mim mesmo.

23 setembro 2018

Travesseiros

Se me fosse possível escolher não estaria aqui.
Falando versos e cantando canções
De uma vida que não aconteceu e sejamos francos, não acontecerá.

Se fosse possível voltar no tempo
Questionaria os planos de minha mãe
Se planos houveram.

Se fosse possível apertar um botão
E sem dor encarar o branco da partida
Sem pensar sequer uma vez eu o faria
A dor move o dedo que escreve , a voz que canta.

Mas o fato é que aqui estou.
Cheguei até esta sala verde
Olhando para alguns rostos familiares, mas quase todos desconhecidos.

As lágrimas me esperam na casa.
Meus travesseiros sabem, eles me esperam, somente eles.
Inanimados e substituíveis, inúteis
Sequer me garantem um bom sono.

A ânsia de vida urge, ou melhor, ruge como um leão
Até ficar rouco pela falta de resposta.

No fim, não queria poesia, queria a frivolidade dos bons momentos
Queria a ignorante esperança
Queria não merecer a felicidade, e assim, como os felizes, obtê-la.

Queria não querer nada, se fosse permitido.
Se fosse, se eu fosse...

Mas recebi nas mãos a missão de amar várias estradas só de ida.
E até essas estradas desmoronaram à mínima chuva.

21 setembro 2018

Miragem

Nada aconteceu aqui antes.
Nunca o beijo, nunca o gosto.

Nenhum ladrão me esperava atrás da porta e nenhum mistério havia nas gavetas.
Nenhuma testemunha, nenhuma onda batendo nos rochedos.

Nada no pote de café, nenhuma xícara inteira.

Coisa alguma se formava nos canos de esgoto, o ar estava parado e sem vento.
Bandeirolas murchas, flores mortas, bichos plácidos com sede.

Tanta fome e nenhuma mesa posta.
Nenhuma antena no telhado, nenhum telhado.

Estendo roupas no varal como quem cumpre um santo ofício.
Vejo as camisas tão alvas tremulando ao vento, todas minhas e tão estúpidas em sua brancura de prontidão.
Prontas para coisa alguma.
Então um dia eu estava em pé olhando para o nada e definhando por dentro.
Olhei para minha sombra no chão e ela era enorme.

27 julho 2018

Desejável Despedida.



A trilha sonora da minha loucura
Muito velho, esbranquiçado
Cotovelos e joelhos gastos
Dedos tortos e mãos em garras

Tanta graça, porém
Rodopiando no tecido esvoaçante
Como eu anseio pela minha loucura!
Ao som de Chopin
A loucura trazendo a coragem que nunca houve

De sorrir e chorar, de dançar pela última vez
De torcer um pé ou derrubar um abajur

As torneiras todas abertas, as luzes piscando
E no clímax da melodia, chove.

Os rostos que amei, tão bonitos
Passam por mim em carrossel, bem clichê
Homens tão belos quanto tristes
Mas sorriem pra mim
Uma última vez

Não puderam me amar
E agora já estou louco e dançando
Já não os reconheço bem, mas já me apaixono de novo
E então eu estanco.

Como estanquei há anos diante da implacável certeza:
"nunca serei amado".
E meu último lampejo de razão foi entender que foi justamente para amar e ser amado que eu fui feito.
Mas tive que partir em pedaços e comer em cada café da manhã
toda a minha beleza, minha juventude e todo o carinho que eu tinha pra dar.
Como doía no meu estômago depois...

Nunca estive tão próximo da minha desejável loucura.

A noite chegou e me chama
Então já estou deitado, o tapete parece uma relva, tão macia
Em breve ramos e brotos me abraçarão
E o esquecimento será real para todos nós.

Mas apesar de toda a música e dos sorrisos
Apesar da paz aparente
Apesar da mão piedosa da loucura fechando os olhos do vulto estendido em algum chão
Não houve poesia em momento algum.

Uma vez sonhei que ouvia passarinhos cantando
Alguém passou por mim com ar cruel e proclamou sua missão:
De estilingue em mãos, ia "acabar com aquilo".
Eu apenas disse "mas é tão bonito".


29 junho 2018

Uma Doce Odisséia.



Enquanto um corria, o outro olhava.
Um orbitava orgulhoso e incólume, enquanto o outro, enraizado, sentia o vento.
As quatro estações eram formadas pela velocidade dos seus passos, mas o outro só era outono.

O rosto do que corria brilhava de suor e de glória, mas o  rosto do outro era uma sombra azul de placidez como a lâmpada do quarto de dormir da avó, sempre marcando dez da noite e o cheiro de lençóis limpos.
O um estava sempre despertando enquanto o outro estava sempre esperando o toque de recolher.

O um por vezes acenava em sua corrida frenética e o outro amava como suas sobrancelhas se erguiam por um segundo, numa reverência inconsciente. Todas as tristezas pediam passagem no sorriso do outro ao contemplar o atleta e sua cena.

O que era feito de sol tinha amplos caminhos e espaços e sua correria era em zigue-zague e em círculos perfeitos, o outro se movimentava por frestas e reentrâncias escavadas com as próprias mãos e unhas quebradiças.

A carreira do um nunca era ao encontro do outro, ele passava adiante como fantasmas em paredes. O outro ainda e apenas sentia o vento.

O outro sentia o vento, que é aquilo que se sente e não se vê, mas o um era matéria, era corpo e era cheiro. O um existia, o outro apenas acontecia aqui e ali, e cada vez menos.

O um subia em pódios, posava para fotografias e dava autógrafos. O um comemorava qualquer-vitória em camas de neon, enquanto o outro, como uma Eleanor Rigby autômata, jogava arroz sobre si mesmo.

O que corre é feito de mármore,  e o outro executa seu destino sisífico de rolar a pedra em torno de si  e desabar ao final de cada tarde.

Em corpo ou memória,  os mistérios do destino torturam o outro e também o um, mas este não o sabe, desconhece onde dói e portanto apenas ele tem chances de sobreviver ao próprio infarto.

O outro, porém, é quem sempre estará lá, sentinela, amplo em seu limite e extenso em seu solitário amar.

28 maio 2018

Não É Verde Nem Voa

Ela usa um vestido de trapos, cor de sujeira.
As pontas da saia são acinzentadas e afiadas
Tem mãos gigantescas com garras curvas e destrutivas
Uma força descomunal nos braços frágeis e ossudos
A despeito dos dentes podres, ela não exala cheiro.

Deitada ela mede quilômetros e geralmente é assim que ela se move:
Ela se arrasta.
E ainda assim, paira.

Sua voz é um fio seco e constante, semelhante ao grito quando se cai em um abismo sem fim.
Ela sorri o tempo inteiro, sua gargalhada é uma tosse cheia de gemidos.

É cega e guiada por radares muito mais sensíveis
Ela vê principalmente o que não existe.

Há um inseto com seu nome, mas ela nada se assemelha a ele:
Não é verde, nem voa
Não é delicada nem pousa em ombros
Não faz sentido na natureza, só serve aos humanos
Ela escraviza.

Não mora em quartos escuros nem em paisagens sombrias
Ela ataca quando a gente sorri
Quando a gente suspira
Quando a gente acredita
Quando a gente segue em frente

A placa dantesca, injustiçada, só estava tentando nos avisar:
Deixai toda ela, se quiseres entrar
E sobreviver a este lugar.
Pois o inferno sem a presença dela
É só um inferno com uma porta de saída.



15 maio 2018

O Último.


Na fila da vida, o divino estava distribuindo desígnios:
Ao primeiro: "você vai ter uma vida longa e feliz"
Ao segundo: "você vai ser brilhante e terá muito sucesso"
Ao terceiro: "uma vida pacata e tranquila em contato com a natureza"
Ao quarto: "Terá boas surpresas e viverá grandes aventuras."
Ao encarar o quinto, bateu aquele cansaço de ser tão generoso e a pontinha do sadismo que habita cada coisa do universo falou mais alto:
"Você vai amar várias estradas só de ida."

E sorriu sem remorso.

06 maio 2018

Requiem

Escalei montanhas e varei desertos para chegar nesta joia da verdade:
"Será num domingo."

A papelada que não li já dizia isso, estava nas linhas miúdas do contrato que assinei, estava dentro do biscoito da sorte que não abri:
"Será num domingo"

Estava o tempo todo debaixo do meu nariz, debaixo do meu travesseiro, escrito no espelho do banheiro:
"Foi num domingo"

Era isso que a mensagem na garrafa dizia, o pergaminho em sânscrito e o sonho que eu tive tentaram me avisar:
"Tem sido aos domingos"

Ignorei a marca das unhas na parede, os óculos sempre molhados de lágrimas, os cabelos arrancados deixavam claro:
"Será num domingo"

Essa parede branca implacável, a ausência de sons e a sensação de naufrágio não podiam se confundir:
"Tem acontecido aos domingos"

Diante de tantos sinais, não há o que se fazer, não quero fazer, ninguém pode fazer, as pessoas estão no sábado, ou também tem seus domingos, um domingo chama outro domingo e só quero que o domingo chegue logo, o domingo que o outro domingo chama, o domingo que os outros domingos preparam, o domingo que os outros domingos fazem a cama, tecem os bordados, mexem na panela, aquecem no ventre:
o domingo que finalmente cessará os domingos.

01 maio 2018

Insumos

Amigo, teus olhos me sobressaltaram
Para eu correr e lembrar de tirar as torradas que estavam assando no forno
Pois mesmo as torradas não podem queimar demais.
E mesmo o sentimento mais despreocupado não pode ser esquecido na janela
Ou os insetos tomarão conta

E, amigo, os insetos também tem o direito deles
De devorar com ânsia o que é doce
E sem proteção alguma.

Amigo vês que te admiro os pés e os braços
Que não são necessariamente aquilo que te move em essência
Mas porque pisam e abraçam
E há um poder nisso que a ninguém suplanta.

Debaixo das telhas do que desabou
Existem colônias de bichos, coloridos, vagaluminosos
Nunca antes vistos nem devorados nem mesmo nos países onde se comem insetos
Uma surpresa reservada para nós dois, amigo
Um cardápio para nosso paladar incomum
Que nem nós saberemos se o gosto é bom ou ruim

Ah amigo e existe a aurora, aquela luz azulada que depois fica branca
E fica amarela, e laranja e vermelha
E volta a ser azul
Porque azul é a cor das coisas que nunca foram vistas
E das flores nunca colhidas
E dos sonhos nunca realizados
E dos campos que nunca viram pés correndo sobre eles nem gritos de alegria

Mas caminharemos passo a passo, apenas
Segurando nossos ventres com constrangimento e prazer
Sobre o caminho que um de nós escolher
Ou sobre os caminhos que ninguém escolheu
E que não são ladeados por flores azuis
Porque não sabemos se gostamos dessa cor

Contanto que haja tua mão, amigo
Apertando forte ou fraca a minha
Ou até distantes
Não saberemos o gosto de nada
Mas pelo menos para um de nós
Será bom.

20 abril 2018

Amigo, Olha Nos Meus Olhos.

Amigo, tu deixaste o embrulho esquecido no assento que ocupaste.
Toma, amigo, o pacote que eu sei que não esqueceste, mas simplesmente abandonaste
Esperançoso que ninguém repararia tua pequena desfeita.
Perdoa-me, amigo, por perceber teu desamor, teu desprezo, tua frieza.
Sei que és este ser em natureza, que larga e que faz pouco, que joga no lixo o resto do bolo que te foi carinhosamente servido.
Ou mesmo toda a fatia.
Mas amigo, eu noto tuas sombrias facetas, teus movimentos furtivos, tuas escolhas erradas e tuas vis distrações porque, veja bem amigo, ninguém mais as percebe.
A ninguém mais tu interessas, a não ser a esta sombra de gente, este espectro de amor, esta réstia de paixão.
É este teu castigo, amigo amado, engole este fardo.
Ninguém vai te amar jamais e logo mais, num entardecer qualquer, num ímpeto de ladrão:
Tu serás a bagagem esquecida.

15 abril 2018

Mudez.

definhar
verbo
  1. 1.
    transitivo direto e pronominal
    fazer perder ou perder as forças; debilitar(-se), extenuar(-se).
  2. 2.
    intransitivo
    tornar-se paulatinamente fraco, magro, abatido; emagrecer

    sozinho
    adjetivo
    1. 1.
      inteiramente só, isolado, sem nenhuma companhia.
      "disse que queria ficar s."
    2. 2.
      acompanhado somente de uma outra pessoa.
      "disse que ficaria s. com o professor"
    3. 3.
      sem auxílio de ninguém, por conta própria; desajudado.
      "fez todo o trabalho s."
    4. 4.
      por si mesmo, sem intervenção de ninguém.
      "a casa desabou s."
    5. 5.
      consigo mesmo.
      "costumava falar s."
    6. 6.
      desprovido de carinho, de afeto, de auxílio moral ou material; abandonado.
      "perdeu o pai e a mãe e ficou s. no mundo"
    7. 7.
      que é só um; isolado, único.
      "via-se uma árvore s. no descampado"
    8. 8.
      ermo, deserto, desabitado.
      "lugar s."

      abandono
      substantivo masculino
      1. 1.
        ato ou efeito de largar, de sair sem a intenção de voltar; afastamento.
        "o a. da casa foi uma boa decisão"
      2. 2.
        falta de amparo ou de assistência; desarrimo.
        "o a. de menores é um crime"
         
         
         
        dor1
        ô/
        substantivo feminino
        1. 1.
          med sensação penosa, desagradável, produzida pela excitação de terminações nervosas sensíveis a esses estímulos, e classificada de acordo com o seu lugar, tipo, intensidade, periodicidade, difusão e caráter.
          "d. de cabeça"
        2. 2.
          mágoa originada por desgostos do espírito ou do coração; sentimento causado por decepção, desgraça, sofrimento, morte de um ente querido etc.
          "a d. de ver por terra os seus sonhos"
        3. 3.
          sentimento que surge em decorrência de dano causado a outrem ou a si mesmo; arrependimento, pesar, remorso.
          "feria-o, implacável, a d. do que fizera"
        4. 4.
          sentimento de pena com relação a outrem ou a si mesmo; compaixão, dó.
          "tinha d. de ver as dificuldades por que passavam os vizinhos"
        5. 5.
          fig. expressão ou manifestação do sofrimento físico ou moral.
          "versos plenos de d."
        6. 6.
          substantivo feminino plural
          infrm. os sofrimentos provenientes do trabalho de parto.
          "quando lhe vieram as d., correu para o hospital"


    E nenhuma palavra descreve.

01 abril 2018

Minha Melhor Amiga Me Abandonou.



A minha melhor amiga sempre chegava sem avisar na pior hora
Eu nunca a chamava, eu sequer considerava que ela viesse
Mas num piscar de olhos lá estava eu nos seus braços
Ela vinha me salvar
Entendi com o tempo que ela sabia o momento exato de intervir
Se viesse antes não seria notada
Se viesse depois seria tarde demais.

Ela trazia travesseiros e coisas macias
Ela me fazia chorar e eu me sentia melhor depois
Ela me fazia rir também, mesmo que em meio às lágrimas
Ela me dava água para beber e me fazia olhar pela janela pra respirar fundo.

Ela me esgotava até eu percebi que tinha sobrevivido
E então ela desaparecia sem que eu me despedisse.

Mas a minha melhor amiga
Ela vinha me salvar dela mesma
A missão dela era me deixar vivo
Para a sua próxima visita
Ela era infinitamente mais cruel que eu
Só assim poderia ser minha melhor amiga.

Mas agora ela não tem mais vindo
Por isso estou falando dela no passado
Ela tem me deixado a sós com ela mesma
Com  a pior parte dela
Sem travesseiros, sem nada macio
Sem o choro redentor, sem o riso que me levava à razão
Sem janelas.
Ela secou fontes e garrafas.
A hora certa passou e ela não veio me salvar
Ela veio não-me-salvar.

E agora? me pergunto olhando pro relógio
Ela devia ter vindo há meia hora atrás
Eu não devo ter sobrevivido dessa vez

É isso, ela quer que eu siga sem vida.

(A minha melhor amiga nunca mais vai embora?)

Mas nossa relação ficou abalada com esse abandono
Eu poderia esperar de todos, mas dela não
Eu não quero chamá-la mais de "melhor amiga"
Mas sei que de algum lugar em um inferno distante ela está sorrindo
(para mim)
(de mim)
Porque sabe que é inútil.

Mas qualquer barulho que ouço
Penso que é ela
Não sei porque, ela vinha silenciosa
Má, rasteira, torturante, sedenta
Minha melhor amiga.

Que saudade dela.












18 fevereiro 2018

Não Acaba

Não acabou ali nem aqui.
Não foi no ponto quando você chorou
Nem quando cuspiu pro alto
Não acabou quando você rolou ribanceira abaixo
Nem quando jogou seu carro no precipício

Não foi quando você misturou os venenos

Nem tampouco quando apertou o botão vermelho

Não acabou na hora marcada
Nem na hora do angelus
Nem quando faltou ar
Nem quando você calçou a sluvas
Nunca acabou quando você quis
Nem quando você desistiu
Acabou faz tempo, quando você menos imaginou
Acabou quando você disse "sim"
Quando girou a chave na porta
Quando abriu a janela, acabou ali
Vem acabando em cada manteiga no pão
Acabou, finalmente, quando engoliu seco
Quando selou a carta, quando montou o cavalo.
Só acaba quando começa, você pensa
Mas acabou antes de.
Saiba que
A esperança é a última que te mata.

12 dezembro 2017

Caminheiro


Bem quando eu passei de um benjamin plantado por não sei quem
Eu quis voltar.
Mais da metade do caminho já ia
Eu já tinha passado a ponte, o lago, o vale
Já tinha bebido toda a água, já não tinha mais fome

Já tinha acenado pro velho na janela
Já não esperava mais que o sol abrandasse a estrada
Já tinha derrubado o que levava nas mãos
já não tinha mais mãos
A estrada, tão estrada
Chapeuzinho Vermelho, A Mulher de Ló.

Eu quis voltar então
Quando eu já tinha acertado o passo
Quando eu já não tinha fé no ritmo
Quando os pássaros já tinham bicado meus olhos
Quando o pior já tinha passado.

Quis voltar
Justo quando eu não tinha mais nada que precisava
Justo quando eu não amava mais ninguém
Eu era um homem rico

E eu quis voltar.



01 setembro 2015

Nudez Artística



Sempre estive rodeado de gente.
Na minha casa eram eu, meu irmão, um primo sempre.
Meu pai, minha mãe e um tio inválido.
Uma porta na cozinha levava à mais família paterna:
Duas tias, minha avó e uma tia avó que desde que eu nasci já tinha 90 e tantos anos.
E Jô o cachorro, metade dálmata metade não sei o quê.
Minha grande fobia: baratas.
Mas tinha muita gente pra matá-las.

Meu tio morreu.
Minha tia avó depois.
Jô morreu do coração quando brincava no quintal.

Todos fomos pra mesma casa.
Mas meu irmão casou e foi embora.
Uma das tias foi morar com o namorado.
Minha avó  partiu.

"O tempo rodou num instante"

Minha outra tia foi morar com meu irmão.
Meu primo fez família, não veio mais.

Minha mãe suspirou e partiu.

Estamos aqui eu e meu pai.
Ele sozinho na imensa casa embaixo.
Eu na casa menor de cima.

Minha fobia de baratas é a mesma.
Quando acordo de madrugada e vou banheiro
Levo sempre uma lata de veneno.
Ando segurando ela pela casa e quando saio também.

Cabe a mim matar as baratas quando elas aparecerem.
E elas vão aparecer, mais cedo ou mais tarde.

Vou eventualmente na varanda, sozinho, de noite, de madrugada.
Também levo o(s) veneno(s).

Vivo com medo.
Da praga, da solidão.

"Ele só quer um pouco de carinho." _ disse um amigo clínico sobre mim.
Mas eu escutei isso como uma ordem médica.

"Quanto ao futuro."


19 julho 2015

Letal



Sorrateiramente pela madrugada

Chega a mancha da assustadora constatação:
A vida é uma grande surra.
Nossos corpos acordam doloridos e com marcas.

Vergões roxos.
Não há nenhuma canção de ninar que nos salve de sermos atacados durante o sono.

Repentina como um infarto
Instala-se a perturbadora certeza:
O amor é o diabo.
Nossos olhos cheios de morte e miséria.

Retinas retintas.
Corpos sendo arrastados por um inferno azul.

Ensandecido como eu apaixonado
Assenta-se sobre o peito raquítico:
O mundo inteiro, pesado e pétreo.
A solidão é cristalina.
Uma fonte onde empurram nossa cabeça pra baixo.

Afogados em sangue
Pés descalçados para dormir
Como se simplesmente pudessem.

Loucura tropical fatal transmitida por mosquito.
Para morrer dela, basta, como um tolo suado e dilatado, acreditar.

18 janeiro 2015

Ritual


Esse filme eu já vi antes. Essa luz amarelada. Essa multidão. Esse açúcar no fundo do copo.
Já dancei essa música. Essa mão estendida. Essa mancha na camisa.
Essa fumaça, já apaguei.
Já desmascarei essa mentira.

Esse corredor sem fim, já percorri.
Já me perdi nesse labirinto antes.
Já comi a escuridão antes, já mergulhei na poeira.

Já. Já. Já. Também. Já.
Já enlouqueci ontem mesmo.

Já fiz rodeios para dizer o que quero:

Essa apoteose, essa gargalhada, esses fogos de artifício explodindo pra mim, essa onda batendo e esse coral de anjos cantando meu nome e esse céu se abrindo.
Já vivi essa morte antes.

E esse escuro, essa réstia de luz na porta, esse ponto de interrogação, esse soluço.
Essa palavra maldita, esse bendito silêncio, esse eco me dá medo.
Esse pôr do sol, onde eu vi isso antes?

Já dei giros em torno de mim mesmo, já orbitei, não há mais galáxia para fugir.

Já dormi. Essa cama. Já me despedi de todos vocês.

E esse retorno, essa trilha, esse mapa que enfim já desenhei na parede.
Já apaguei  e estou aqui refazendo.

Essa vida.

15 abril 2014

O Jardineiro Infiel.


Tenho certeza que dessa vez vim para cuidar apenas de mim.
Mas trago os resquícios dos amores incondicionais, das anulações e das abnegações.
Suas origens não sei, mas pulsam.

Porém, tenho tudo para ser liberto.
A falta de amar e ser amado, inclusive.

Com a idade, essa sanha voluntariosa em dispensar carinho a alguém veio através de um fulgurante desejo de ter um cachorro.
Nada mais impróprio, pois, como disse, dessa vez vim seguramente preparado a ter distância de animais, essas coisinhas fofinhas e meio bobas (no caso dos cães): tenho medo deles, das suas mordidas, dos seus dentes, das suas unhas, não suporto  xixi nem o cocô de animal pela casa, não concebo a ideia de dar banho ou cortar as unhas desses seres.
Quem quer que tenha me dado a missão de dessa vez vir apenas para me divertir e não cuidar de ninguém (no máximo, com esforço, de mim mesmo) sabe que eu me anularia e viraria o "véi dos gatos" em pouco tempo. Nem precisava eu ser velho, nem ter gatos.
Enfim.

Ganhei uma planta. Na verdade meio que pedi do jardim de uma pousada em Paracuru.
Lembrança de uma hospedagem gentil, de um final de semana lindo.
Helicônia o nome dela, e soube que dava flores lindas e estranhas.

A planta não deixa que eu me doe demais, o que é ótimo.
Se eu fico uns dias sem regar, ela não morre. Ela não parece gostar de mim nem desgostar.

Até que vez ou outra no sol de Fortaleza, ao meio dia (entendeu né?) eu pego uma tesoura e fico lá na varanda, podando as partes secas, cortando as pontinhas, ajeitando, cutucando...cuidando.
Amando. E ela sendo planta, parada e verde.
Me levanto, limpo as mãos na roupa e penso "é assim que é".

Estava tudo bem assim até que - trouxe ela pra dentro de casa uns dias, pois o sol estava difícil até para as plantas - levei-a para o alto da minha escada .
Uma madrugada - como uma mãe alerta à chegada do filho da farra - escuto um barulho de folhas e estalos.
Um dos gatos que meu pai cria - e que é outra história porque o máximo que conseguimos nos relacionar é eu ficar olhando pra eles sem expressão e eles olhando de volta, os olhos sempre arregalados e alertas, os gatos daqui não são blasés - simplesmente destruiu 70% , não, 80%, não, 95 % da minha pobre e amada Helicônia - que nunca floriu.

Eu chorei.
E meu Anjo-Da-Missão deve ter pensado: "Meu Deus, Não Tem Jeito."

Voltei a deixá-la lá fora e vigiar cada passo do gato sádico.
Meu pai disse que ele queria brincar. Sei.
Ela se recuperou, coitada. Não toda. Uns toquinhos quebrados estão lá ainda, secos e estoicos. Outros cresceram frágeis, mas quem faz mesmo a planta são os novos que nunca viram a pata assassina do gato.

Mas toda essa prosa  é porque a Helicônia (com letra maiúscula mesmo), do nada, na surdina, no verão, esses dias, em abril: deu flor.
Reconheci um inchaço, uma coloração vermelha, como uma unha inflamada.
Pensei (só pensei, pra não assustar o bebê, ou a mãe, enfim) "vai nascer uma flor!"
Nasceu uma (a da foto), nasceu outra, que ainda não abriu, e já notei com meu novo olho de feiticeiro que vem mais por aí.

Sou uma pessoa que tem flores na varanda de casa, agora.
Porque ela demorou tanto não sei, talvez porque nenhum ser vivo tenta me agradar de maneira óbvia ou na hora que eu espero. Ou talvez ela não dê a mínima pra mim, o que acontece muito também.

Pois é, não sei me comportar como alguém, cuja planta, floresceu.
Já estou impaciente pensando quanto tempo ela dura. Como vai ser quando murchar e cair.

Porque esse sou eu: sofrendo, amando. Amando coisas, pessoas, plantas, bichos.
Cadê o Anjo-Da-Missão agora?
Não confio muito no bom senso nem nas habilidades dele.
Preciso lhe falar pessoalmente das coisas que me são perigosas.



31 março 2014

Desencanto



Para onde vai toda essa tristeza?
Pra que serve?
Como em tudo na vida, você espera o clímax.
O capítulo da novela acaba, a própria novela um dia termina.
Um livro tem páginas contadas.
Um caminho leva a algum lugar, um rio para o mar.

E a tristeza? É sempre assim, sádica e sem fim?
Chega esfaqueando e vai-se sem lição alguma.

Onde se acumulam as amarguras da vida?
Haverá algum momento, nem que seja minutos antes da morte
Que toda dor e tristeza passarão e dirão:
"Pronto, terminei meu trabalho"?

Ou é tudo em vão?
Dor pela dor, pranto pelo pranto, tristeza por tristeza e vazio por vazio?

Quantas vezes alguém se cansa e perde toda a poesia de viver até que se canse de vez e desista da poesia e da vida?

Espero que não muitas.

19 março 2014

Seio


Não se sente a vida na festa.
Não é no brinde, nem na risada, nem ao se abrir a embalagem do presente.

Senti a vida quando você me deixou.
E você. E depois você.

Vejo as crianças e nelas há o perigo da tragédia:
Na vida e no amor: uns matarão e outros morrerão.
Nós que estamos do lado dos que morrem, é o pior destino.
O mais cruel, desumano.
Só elas sabem que não há um deus.

Aquele afogado, aquela pessoa na linha do trem:
No último minuto ela soube: um pouco mais de amor e a salvação.

Não se sente a vida até que alguém não se importe.
Não se sente a vida até que se morra.

Tantas pessoas no mundo não tem a capacidade de amar.
E você cruza o caminho da pior delas.

Mas você também tem seus monstros.
Mas o que ninguém sabe é que você os alimenta com amor.
E você não sabe que é por isso que eles crescem tão fortes.

E matam você no exato momento que sentem a vida.




18 janeiro 2014

Uma Chuva Que Nunca Chega.




Queria uma poesia tão real
Ao ponto de comê-la, tocá-la, chutá-la para debaixo da cama.

Mas tudo que encanta é tão fugidio.
É fumaça, é miragem.

O que fiz com minha criança?
Desapareci, como as gramas verdejantes de minha infância?

Onde está a poesia do que eu observava pela janela, com olhos tão castanhos?
Olhos de poesia, na chuva, na flor, no chão, no céu.

Em poças de água, refletindo um raro arco íris.

Levantei os olhos dez, vinte, trinta anos depois e nada vi.
Continuo levantando os olhos a cada dia, minuto, segundo.
Esperando ver a poesia, a poesia, a poesia.

Um desespero por poesia.

O garoto desaparece, que nem na música, ou por causa da música.
Da poesia.
Ele some e não aparece um substituto.

Não há: se a poesia acaba, não tem depois.

O que você fez a si mesmo?

Isso tudo é tão triste, tão canção. Não há som de chuva para nós, e sentimos falta disso.

A poesia pra mim agora é a memória de um pé de jambo.
O cheiro daquilo. A fruta eu nunca provei e nunca gostei, como o amor.
Todo dia alguém desaparece na poesia, nas brumas do futuro, nem tanto do passado.

Que poesia você tem consigo?
Você acredita em poesia?
De repente, quero saber disso, de você que me lê.

Tenho curiosidade como o garoto que desapareceu na música e nessa poesia.


16 dezembro 2013

Espólio.

Todo um ano, mais de 300 dias e eu estive:
Voltando pra casa impávido, exangue, extinto, seco, mudo e calado.

Querendo ser malabarista, tudo que consegui  foi ser equilibrista.
E no último minuto, querendo alguma ação, eu derrubo tudo.

Toda a vida, incontáveis ventos, manhãs. Sol e Lua.
E eu estive: amargo, fracassado, risível, ridículo.

Com água nos joelhos, sem direito a mergulho.
Afetos deslizando dos dedos, pingando no chão e como o sangue da medusa, criando seres alados e venenosos que adoçarão outras vidas que não a minha.

O que vem lá?
Todo um futuro e eu:
Não quero mais.


06 novembro 2013

Numa Manhã de Sol.



Saiba.
Haverá um monumento, num futuro próximo.
Uma marca no chão, um leve perfume, uma fumaça
Haverá uma memória de um rosto, uma leve lembrança do som da voz.

Haverá fim, haverá morte, haverá um quarto para arrumar.

Saiba, perderão-se fotos, não mais poesia.
Os livros, doarão, as músicas, canceladas logo após o refrão inicial.
Apenas o vento percorrerá os cômodos da casa, sem nada encontrar.

A profunda mágoa, a dor que leva à morte, e pior de todos os males: o cansaço.
Caminharão de mãos dadas sobre os escombros da pessoa que eles mesmos implodiram.

Não obstante tanta agonia, saiba que será numa manhã de sol.