29 junho 2018

Uma Doce Odisséia.



Enquanto um corria, o outro olhava.
Um orbitava orgulhoso e incólume, enquanto o outro, enraizado, sentia o vento.
As quatro estações eram formadas pela velocidade dos seus passos, mas o outro só era outono.

O rosto do que corria brilhava de suor e de glória, mas o  rosto do outro era uma sombra azul de placidez como a lâmpada do quarto de dormir da avó, sempre marcando dez da noite e o cheiro de lençóis limpos.
O um estava sempre despertando enquanto o outro estava sempre esperando o toque de recolher.

O um por vezes acenava em sua corrida frenética e o outro amava como suas sobrancelhas se erguiam por um segundo, numa reverência inconsciente. Todas as tristezas pediam passagem no sorriso do outro ao contemplar o atleta e sua cena.

O que era feito de sol tinha amplos caminhos e espaços e sua correria era em zigue-zague e em círculos perfeitos, o outro se movimentava por frestas e reentrâncias escavadas com as próprias mãos e unhas quebradiças.

A carreira do um nunca era ao encontro do outro, ele passava adiante como fantasmas em paredes. O outro ainda e apenas sentia o vento.

O outro sentia o vento, que é aquilo que se sente e não se vê, mas o um era matéria, era corpo e era cheiro. O um existia, o outro apenas acontecia aqui e ali, e cada vez menos.

O um subia em pódios, posava para fotografias e dava autógrafos. O um comemorava qualquer-vitória em camas de neon, enquanto o outro, como uma Eleanor Rigby autômata, jogava arroz sobre si mesmo.

O que corre é feito de mármore,  e o outro executa seu destino sisífico de rolar a pedra em torno de si  e desabar ao final de cada tarde.

Em corpo ou memória,  os mistérios do destino torturam o outro e também o um, mas este não o sabe, desconhece onde dói e portanto apenas ele tem chances de sobreviver ao próprio infarto.

O outro, porém, é quem sempre estará lá, sentinela, amplo em seu limite e extenso em seu solitário amar.